Hécate.
Hino Órfico à Hécate
“Hécate a Beleza, eu a invoco:
Vós, dos caminhos e encruzilhadas, do céu,
da terra e também do mar.
Vós, vestida de açafrão, dentre as tumbas,
Dançando com as almas mortas e o ritual
báquico.
Vós, filha de Perses, amante da desolação,
se regozija em gamos e cães, na noite.
Vós, terrível Rainha! Devoradora de bestas!
Despertada, possuída por forma inacessível!
Vós, caçadora de búfalos, Imperatriz
soberana universal:
Vós, guia que vagueia pela montanha, é
noiva, é pajem,
eu rogo, Ó Donzela, sua presença nestes
rituais sagrados.
Vós, que vindes com a graciosidade do touro
e um eterno coração alegre".
Filha dos Titãs
estelares Astéria e Perseu, Hécate usa a tiara de estrelas que ilumina os
escuros caminhos da noite, bem como a vastidão da escuridão interior. Neta de
Nyx, deusa ancestral da noite, Hécate também é uma “Rainha da Noite” e tem o
domínio do céu, da Terra e do mundo subterrâneo. “Senhora da magia” confere o
conhecimento dos encantamentos, palavras de poder, poções, rituais e
adivinhações àqueles que A cultuam, enquanto no aspecto de Antea, a “Guardiã dos sonhos e das
visões”, tanto pode enviar visões proféticas, quanto alucinações e pesadelos se
as brechas individuais permitirem.
Como Prytania, a “Rainha dos mortos”, Hécate é a
condutora das almas e sua guardiã durante a passagem entre os mundos, mas Ela
também rege os poderes de regeneração, sendo invocada no desencarne e nos
nascimentos como Protyraia, para garantir proteção e segurança no
parto, vida longa, saúde e boa sorte.
Hécate Kourotrophos cuida das crianças durante a vida
intra-uterina e no seu nascimento, assim como fazia sua antecessora egípcia, a
parteira divina Heqet. Possuidora de uma aura fosforescente que brilha na
escuridão do mundo subterrâneo, Hécate
Phosphoros é a guardiã do
inconsciente e guia das almas na transição, enquanto as duas tochas de Hécate Propolos, apontadas para o céu e a terra, iluminam a busca da transformação
espiritual e o renascimento, orientado por Soteira, a Salvadora.
Como deusa lunar Hécate rege a face escura da
Lua, Ártemis sendo associada com a lua nova e Selene com a lua cheia. No ciclo
das estações e das fases da vida feminina Hécate forma uma tríade divina
juntamente com: Kore/Perséfone/Proserpina/Hebe - que presidem a primavera,
fertilidade e juventude -, Deméter/Ceres/Hera – regentes da maturidade,
gestação, parto e colheita - e o Seu aspecto Chtonia, deusa anciã, detentora de sabedoria,
padroeira do inverno, da velhice e das profundezas da terra.
Hécate Trivia e Trioditis, protetoras dos viajantes e guardiãs
das encruzilhadas de três caminhos, recebiam dos Seus adeptos pedidos de
proteção e oferendas chamadas “ceias de Hécate”. Propylaia era reverenciada como guardiã das
casas, portas, famílias e bens pelas mulheres, que oravam na frente do altar
antes de sair de casa pedindo Sua benção. As imagens antigas colocadas nas
encruzilhadas ou na porta das casas representavam Hécate Triformis ou Tricephalus como pilar ou estátua com 3 cabeças e
6 braços que seguravam suas insígnias: tocha (ilumina o caminho), chave (abre
os mistérios), corda (conduz as almas e reproduz o cordão umbilical do
nascimento), foice (corta ilusões e medos).
Devido à Sua
natureza multiforme e misteriosa e à ligação com os poderes femininos
“escuros”, as interpretações patriarcais distorceram o simbolismo antigo desta
deusa protetora das mulheres e enfatizaram Seus poderes destrutivos ligados à
magia negra (com sacrifícios de animais pretos nas noites de lua negra) e aos
ritos funerários.
Na Idade Média, o cristianismo distorceu mais
ainda seus atributos, transformando Hécate na “Rainha das bruxas”, responsável
por atos de maldade, missas negras, desgraças, tempestades, mortes de animais,
perda das colheitas e atos satânicos. Estas invenções tendenciosas levaram à
perseguição, tortura e morte pela Inquisição de milhares de “protegidas de
Hécate”, as curandeiras, parteiras e videntes, mulheres “suspeitas” de serem
Suas seguidoras e animais a Ela associados (cachorros e gatos pretos, corujas).
No intuito de abolir qualquer resquício do
Seu poder, Hécate foi caricaturizada pela tradição patriarcal como uma bruxa
perigosa e hostil, à espreita nas encruzilhadas nas noites escuras, buscando e
caçando almas perdidas e viajantes com sua matilha de cães pretos, levando-os
para o escuro reino das sombras vampirizantes e castigando os homens com pesadelos
e perda da virilidade. As imagens horrendas e chocantes são projeções dos medos
inconscientes masculinos perante os poderes “escuros” da Deusa, padroeira da
independência feminina, defensora contra as violências e opressões das mulheres
e regente dos seus rituais de proteção, transformação e afirmação.
No atual renascimento das antigas tradições
da Deusa compete aos círculos sagrados femininos resgatar as verdades
milenares, descartando e desmascarando imagens e falsas lendas que apenas
encobrem o medo patriarcal perante a força mágica e o poder ancestral feminino.
Em função das nossas próprias memórias de repressão e dos medos impregnados no
inconsciente coletivo, o contato com a Deusa Escura pode ser atemorizador por
acessar a programação negativa que associa escuridão com mal, perigo, morte.
Para resgatar as qualidades regeneradoras, fortalecedoras e curadoras de Hécate
precisamos reconhecer que as imagens destorcidas não são reais, nem
verdadeiras, que nos foram incutidas pela proibição de mergulhar no nosso
inconsciente, descobrir e usar nosso verdadeiro poder.
A conexão com Hécate representa para nós um
valioso meio para acessar a intuição e o conhecimento inato, desvendar e curar
nossos processos psíquicos, aceitar a passagem inexorável do tempo e transmutar
nossos medos perante o envelhecimento e a morte. Hécate nos ensina que o
caminho que leva à visão sagrada e que inspira a renovação passa pela
escuridão, o desapego e transmutação. Ela detém a chave que abre a porta dos
mistérios e do lado oculto da psique; Sua tocha ilumina tanto as riquezas,
quanto os terrores do inconsciente, que precisam ser reconhecidos e
transmutados. Ela nos conduz pela escuridão e nos revela o caminho da
renovação. Porém, para receber Seus dons visionários, criativos ou proféticos
precisamos mergulhar nas profundezas do nosso mundo interior, encarar o reflexo
da Deusa Escura dentro de nós, honrando Seu poder e Lhe entregando a guarda do
nosso inconsciente. Ao reconhecermos e integrarmos Sua presença em nós, Ela irá
nos guiar nos processos psicológicos e espirituais e no eterno ciclo de morte e
renovação. Porém, devemos sacrificar ou deixar morrer o velho, encarar e
superar medos e limitações; somente assim poderemos flutuar sobre as escuras e
revoltas águas dos nossos conflitos e lembranças dolorosas e emergir para o novo.
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